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2003-09-24

POESIA: Ó VÉSPERA DO PRODÍGIO IV 

 
Creio nos anjos que andam pelo mundo,
Creio na deusa com olhos de diamantes,
Creio em amores lunares com piano ao fundo,
Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes,

Creio num engenho que falta mais fecundo
De harmonizar as partes dissonantes,
Creio que tudo é étero num segundo,
Creio num céu futuro que houve dantes,

Creio nos deuses de um astral mais puro,
Na flor humilde que se encosta ao muro,
Creio na carne que enfeitiça o além,

Creio no incrível, nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo pelas rosas,
Creio que o amor tem asas de ouro. Ámen.


NATÁLIA CORREIA, Sonetos Românticos (1990).

2003-09-21

NOTÍCIA DE UM CASO TREMENDO QUE ABALOU O PARLAMENTO 

 
Estava o Parlamento em tédio morno
Do Processo Penal a lei moendo
Quando carnal a deputada porno
Entra em S. Bento. Horror! Caso tremendo!

Leda à tribuna dos solenes sobe
A lasciva onorevole Cicciolina
E seus pares saudando ali descobre
O botão rosado da tettina.

Para que dos pais da Pátria o pudor vença,
Do castro bracarense o verbo chispa:
«Cesse a sessão em nome da decência
Antes que a Messalina mais se dispa.»

Mas  -  ó partidas que prega a estatuária!  -
Que fazer no hemiciclo avesso ao nu
Daquela estátua que a nudez plenária
Ali ostenta sem pudor nenhum?

Eis que o demo-cristão então concebe
As vergonhas velar da escultura.
Honesta inspiração do céu recebe
E moção apresenta de censura:

«Poupado seja à nudez viciosa
O olhar parlamentar votado ao bem.
Da estátua tapem-se as partes vergonhosas.
Ponham-lhe cuequinhas e soutiens.»


NATÁLIA CORREIA, Cantigas de Risadilha.

«O acto sexual é para fazer filhos» - disse ele 

Um poema de Natália Correia
a João Morgado (CDS)


«O acto sexual é para ter filhos» - disse, com toda a boçalidade, o deputado do CDS no debate anteontem sobre legalização do aborto. A resposta em poema, que ontem fez rir todas as bancadas parlamentares, veio de Natália Correia. Aqui fica:


Já que o coito   -   diz Morgado   -
tem como fim cristalino,
preciso e imaculado
fazer menina ou menino;
e cada vez que o varão
sexual petisco manduca,
temos na procriação
prova de que houve truca-truca.
Sendo pai só de um rebento,
lógica é a conclusão
de que o viril instrumento
só usou   -   parca ração!   -
uma vez. E se a função
faz o orgão   -   diz o ditado   -
consumada essa excepção,
ficou capado o Morgado.

NATÁLIA CORREIA
Diário de Lisboa, 5 de Abril de 1982.

2003-09-18

Burguês/eses II 

O BURGUÊS

A gravata de fibra como corda
amarrada à camisa mal suada
um estômago senil que só engorda
arrotando riqueza acumulada.

Uma espécie de polvo com açorda
de comida cem vezes mastigada
de cadeira de braços   baixa e gorda
de cómoda com perna torneada.

Um baú de tolice.   Uma chatice
com sorriso passado a purpurina
e olhos de pargo olhanando de revés.

Para dizem quem é basta o que disse
é uma besta humana que rumina
é um filho da puta   é um burguês.


Primeiro de Três Retratos à la Minuta de JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS.

2003-09-17

Burguês/eses 

VERDADEIRA LITANIA PARA OS TEMPOS DA REVOLUÇÃO
Burgueses somos nós todos
ó literatos
burgueses somos nós todos
ratos e gatos
MÁRIO CESARINY

Mário nós não somos todos burgueses
os gatos e os ratos se quiseres
os literatos esses são franceses
e todos soletramos malmequeres.

Da vida o verbo intransitivo
não é burguês é ruim;
e eu que nas nuvens vivo
nuvens! o que direi de mim?

Burguês é esse menino extraordinário
que nasce todos os anos em Belém
e a poesia se não diz isto Mário
é burguesa também.

Burguês é o carro funerário.
Os mortos são naturalmente comunistas.
Nós não somos burgueses Mário
o que nós somos todos é sebastianistas.


NATÁLIA CORREIA, Inéditos (1959/61).

TNSC II 

A Casaca

Para Natália Correia


Para a ópera cómica da tua beleza sem costura
para a sessão solene do teu perfil sem emenda
para a valsa de tule que atas à cintura
para o convite impresso nos teus olhos renda

Para a cauda avestruz do teu andar vereda
o decote intenção da tua voz agulha
recorto este poema num papel de seda
cereja de cicuta que o teu sorriso embrulha

Para o mistério ar do teu nariz begónia
o florete violino do teu silêncio esgrima
alugo as minhas frases de cerimónia
num dicionário dédalo de rimas.


Poema incluído nos livros Adereços, Endereços (1965), Vinte Anos de Poesia (1983) e Obra Poética (1994) de JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS.

2003-09-16

TNSC 

«A primeira vez que vi a Natália Correia foi no São Carlos. Eu estava na galeria ela no segundo balcão. Quando? Ui! Aí pelos anos 50. Apesar de já não ter muito afecto a senhoras, ia caindo para o lado do espectáculo de beleza que ela apresentava. Era quase extra-humana, era muito mais linda que a mais bela estátua feminina do Miguel Ângelo. Era uma coisa impressionante. Mas era também uma mulher de um desdém muito grande. Cheguei a julgá-la assexuada ou frígida mas parece que não era bem isso...» MÁRIO CESARINY entrevistado por Carlos Câmara Leme, Público, 2003.03.16

2003-09-15

O Homem, O Poeta, O Publicitário 

 
O meu José Carlos Ary dos Santos na fotobiografia organizada por Alberto Bemfeita, primeira edição de Setembro de 2003, publicada pela Editorial Caminho.

Bem-haja, Alberto Bemfeita!

José Machado

2003-09-14

Tu, octogenária 

Natália tem oitenta anos feitos ontem. Fomos jovens e em vida não convivemos. Na madrugada de 16 de Março de 1993 parte de nós morreu. Nunca hei-de perceber porque nasci em tempo impróprio. A contemporaneidade deixa-me estendido. Se contigo podia ter estado e te ter conhecido, perdi-te, estupidamente.

Nesse dia eu tinha 15 anos. Após uma década, a tua amiga Helena Roseta com o apoio de David Ferreira, da EMI-Valentim de Carvalho, reeditaram em disco compacto 32 poemas com o primeiro a dar nome ao título - "A Defesa do Poeta" - poemas ditos pela tua voz e pela do Ary.

Quem me fala de ti, fala com respeito e admiração. Conhecia-te dos ecrãs. Comunicavas comigo e, através de ti, descobri o meu gosto por comunicar. Ouvia-te dizer poemas e sinto falta de ouvir-te. Eu, que sempre chamei os meus familiares na terceira pessoa do singular, trato-te por tu.

Li ontem no jornal Público que na ilha de São Miguel, Açores, em Fajã de Baixo, onde nasceste e viveste os primeiros onze anos, foi anunciado a construção de um Centro de Humanidades com o teu nome. O espaço terá um pequeno auditório, uma galeria de exposições, oficinas artísticas e um documentação sobre a tua vida e obra. O projecto é do arquitecto Rui Almeida e será construído num terreno anexo à sede da Junta de Freguesia de Fajã de Baixo, presidida por João Carlos Macedo. Na casa onde nasceste, hoje em estado avançado de degradação, querem fazer um "Centro Comunitário Interregional de Tempos Livres" para crianças e idosos.

Duas efemérides, a génese e a morte. Um CD e vários museus, grandes presentes para recordar-te. Natália, estás e continuarás viva.

A tua colecção de arte foi adquirida pelo Governo Regional dos Açores com a intenção de construir o "Centro de Arte Moderna". Espero que neste país de efemérides, no próximo ano eu possa apreciar as peças que reuniste com o teu gosto.

Afinal somos três homens para ti e dois de nós continuam por cá, sonhando-te, alimentados pela tua poesia e com sede de gritar os teus poemas.


José Machado

2003-09-12

natália correia 

 
navio guerra pero vaz faria
corpo da terra da melancolia
dezembris 24   A natal ia
sobre o beque de mar
da poesia

ia e voltou
à boca do ar
com a boca a brilhar
de alegria

plo quarto de madorna
e à hora da prima
assina
o mar e o cesariny
ou o cesariny mário
da correia onde fico
o lais e o bico
(e o múrmuro mármáreo!)
do altaçor que aluna
na coluna
do Pico


MÁRIO CESARINY

Retrato de Natália 



Hierática   cromática   socrática
passas branca de neve pela sala
nebulosa da pele   via láctea
do único percurso que nos falta.

No teu andar há ventres há tecidos
de leve lã   circuitos do brocado
duma seda tecida na manhã
dos raios dos teus olhos deslumbrados.

Nos teus quadris há cisnes há pescoços
de virgens degoladas   há indícios
do alabastro quente dos teus ossos
iluminando claros precipícios.

É isso. Uma vestal iluminada
uma deusa rangendo uma secreta
porta barroca aberta para o nada
que é o dossel da cama do poeta.
Ali deitas crianças   animais
gemidos e maçãs   vagidos e atletas
pois que amas as coisas naturais
com tua carne impúbere e erecta.

Porém tu acalentas   tu alentas
nossa senhora lenta   mãe do escândalo
ave de carne   lírio de placenta
com aroma de nardos e de sândalo.

Desinfectante e amante eis que transformas
em teus olhos de cânfora as orgias
e o teu corpo ânfora é a forma
em que a lira da noite vaza o dia.


Poema incluído nos livros Fotos-Grafias (1970), Vinte Anos de Poesia (1983) e Obra Poética (1994) de JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS.

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